"Em geral quando termino um livro encontro-me numa confusão de sentimentos, um misto de alegria, alívio e vaga tristeza. Relendo a obra mais tarde, quase sempre penso ‘Não era bem isto o que queria dizer". (VERISSIMO, Erico. O escritor diante do espelho).

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Em Branco


 Aquela garota segura uma foto nas mãos.
Ela está ali, paralisada, já faz um tempo, olha pra foto, mas não consegue, de fato, enxergar, não porque Ela tenha problemas de visão, mas porquê estranhamente Ela não reconhece mais aquele casal.
Foi em 2012, um dos anos mais peculiares de sua vida.
Ela lembra a data e o lugar, mas algo bloqueia a recordação do sentimento.
Afinal, a garota se parece com Ela, tem aquele azul dos olhos dela, mas a intenção, o jeito daquele olhar... não é mais dela, não é, porque nunca mais Ela olhou pra Ele.
Sim, Ele está na foto, em frente a Ela.
Os dois riem, conversam, descontraídos, alguém flagrou aquele momento e tirou a fotografia, Ele nunca soube dessa foto, até hoje Ele deve pensar, que nunca tiveram fotos juntos.
Aquilo parece tão distante, o coração dela sente uma pontada, parece que arde, a garota finalmente se move, levanta-se, a mão parece queimar segurando aquela foto, ela a solta, o papel esvoaça até que atinge o chão, sua parte em branco fica voltada pra cima.
EM BRANCO.
Hoje em dia toda aquela verdade contida naqueles dois olhares daquela foto, está em branco, como se alguém tivesse aparecido com um belo de um corretivo e tivesse lambuzado a foto inteira, dá pra ver uma sombra ou outra, mas não é de fato, o que corresponde a realidade.
A foto imortalizou dois olhares que hoje nem se reconhecem mais.
Quem apagou?
Talvez tenha sido Deus, o Universo, ou, os Dois que um dia quiseram tanto ver-se e hoje temem se esbarrarem na rua.
Os caminhos ali naquela foto seguiram juntos por pouco tempo, uma carona, um beijo, um breve caso, uma história bonita, com um final, para a maioria das pessoas: triste.
Só que não, pra Ela, pra Ela, não.
Hoje, Ela sabe que o final era inevitável, pois na época esperava um Homem, mas só tinha ali, naquelas conversas que Ele jogava com tantas outras, a lábia de um moleque Tolo que começou algo, que pra Ele, de fato, nunca começou. E só Ele poderia entender esse não começo que começou e "descomeçou" naquela noite.
Esse Tolo deve ter crescido, Ela pensa com calma, deve fazer alguém feliz. Ela deseja isso do fundo do coração. Porque hoje Ela é também feliz.
Ainda bem que "descomeçou" para Ele. Pra poder recomeçar nova vida pra Ela, nunca mais acreditou em começos novamente, Ela só acredita em história com roteiro em andamento agora.
O amor dela por Ele, existiu, mas hoje... Ele estava ali pintado de corretivo branco, não ousou arranhá-lo com as unhas, porque ninguém quer mais isso, na época Ele não quis, agora era Ela que não cogitava a ideia.
De corretivos borrados, história nenhuma será pintada, ou escrita a contento.
O negócio é página, folha, papel em branco sem marcas, pra poder escrever nele o que quiser.
Lugar em que tantas marcas foram feitas, torna-se semelhante aquela foto, um arauto petrificado de um sentimento antigo tão falsificado, mascarado, nesse presente.
Hoje... Ela agradece tê-lo conhecido, aprendeu a mais alta lição: "não fazer projeções sobre pessoas, elas são só pessoas, e não devem atender as expectativas de ninguém."
Ela pegou a foto, resoluta, jogou no fundo de uma caixa e colocou no porão junto com todas aquelas bugigangas, não rasgou, não tacou fogo, porque prefere lembrar-se da foto, olhá-la de vez em quando e entender:
Que tudo na vida até passa, até mesmo aquele pseudo-amor que parecia ser um soldado implacável de guerra, mas que caiu morto num melindre idiota, dum "descomeço" de setembro, cheio de branquidão, silêncio, na porta de um local que hoje segue de portas fechadas, estranhamente, talvez em protesto ao argumento chulo de um começo que não começou.